Estudo da EACH revela que na última glaciação, as chuvas torrenciais sobre o território brasileiro teriam se concentrado no Nordeste e na Amazônia

Postado em 06 de janeiro de 2020

A análise de 14 amostras de sedimentos coletadas no talude da costa brasileira, zona submersa de transição entre a plataforma continental e a planície abissal, desde o extremo sul do Rio Grande do Sul até o norte da Amazônia, indica que teriam ocorrido dois padrões de chuva distintos no território brasileiro durante o último período glacial, especialmente entre 70 mil e 10 mil anos atrás. Ao norte do rio Doce, que corta Minas Gerais e Espírito Santo, teria havido aumentos recorrentes e significativos de pluviosidade ao longo da chamada Era do Gelo. Abaixo desse curso d’água, que se encontra a cerca de 20 graus de latitude sul, o fenômeno não foi verificado, segundo artigo científico de pesquisadores brasileiros e alemães publicado em dezembro na revista Quaternary Science Reviews.

Nas áreas em que houve reiteradas subidas frequentes dos índices de pluviosidade, que abrangem o litoral do Nordeste e da Amazônia, a temporada de chuvas intensas teria se concentrado no outono e no inverno. No resto do território brasileiro, nas regiões Sudeste e Sul, os dados sugerem que o clima não apresentou essas alterações.  “Estudos anteriores diziam que as elevações frequentes de pluviosidade durante a última glaciação teriam ocorrido em todo o território brasileiro e que as chuvas mais intensas se concentraram no verão”, comenta o geólogo Cristiano M. Chiessi, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), coordenador do estudo. “Mas os dados do nosso trabalho não corroboram essa visão.”

A composição geoquímica dos testemunhos de sedimentos, como são chamadas essas amostras, foi determinada por análises de fluorescência de raios X e forneceu parâmetros que permitiram inferir o regime de chuvas do passado. De acordo com a proporção de material de origem marinha, como o cálcio, que em sua maioria advém de conchas, e de sedimentos de proveniência continental, é possível reconstituir o padrão de pluviosidade de uma região. Quanto mais chuva cai sobre um continente, maior é a erosão e o transporte de sedimentos terrígenos, de origem continental, pelos rios até sua foz no oceano. Além de recorrer à análise dos testemunhos, dos quais um deles foi obtido pelos autores do artigo (os demais foram consultados na literatura científica), os pesquisadores rodaram modelos climáticos para recriar o provável regime de chuvas sobre o Brasil durante a última glaciação.

Como não havia nenhuma amostra de sedimentos de um trecho importante do litoral brasileiro, entre o Espírito Santo e a Paraíba, o grupo de Chiessi teve de obter um testemunho que cobrisse esse vazio de dados. O local escolhido para fornecer o material foi a desembocadura do rio São Francisco, na divisa de Sergipe e Alagoas. A bordo do navio alemão RV Meteor, os pesquisadores participaram de uma expedição oceanográfica em 2016 e retiraram uma amostra de sedimentos – um cilindro de 10,4 metros de extensão – de um talude localizado ao largo da foz do rio. “Esse testemunho recebeu sedimentos terrígenos oriundos do rio São Francisco pelo menos durante os últimos 70 mil anos”, diz Marília C. Campos, que faz doutorado sob orientação de Chiessi e é a principal autora do artigo.

Durante o último período glacial, ocorreram mudanças climáticas abruptas, que afetaram em menor ou maior grau todos os continentes. Independentemente de ser inverno ou verão, as temperaturas médias ficaram na maior parte da última glaciação 16 graus Celsius mais baixas do que as medidas atualmente na região do polo Norte. As geleiras avançaram rumo ao Equador na América do Norte, na Europa e na Ásia. A situação, entretanto, ficou ainda mais dramática durante seis intervalos de tempo entre 63 e 15 mil anos atrás. Nesses intervalos, as temperaturas no hemisfério Norte despencaram ainda mais, e os icebergs chegaram até o sul da península Ibérica. Esses momentos de alterações climáticas mais drásticas foram descritos em 1988 pelo geólogo marinho e climatologista alemão Hartmut Heinrich, que, até 2017, trabalhou na agência federal hidrográfica e marítima da Alemanha (BSH). Por isso, eles são denominados eventos Heinrich.

Entre 70 mil e 10 mil anos atrás, houve períodos reiterados de aumento nos níveis de pluviosidade ao norte da foz do rio Doce, no espírito Santo (pontilhado laranja), segundo novo estudo

A duração desses momentos mais extremados variou entre algumas centenas e uns poucos milhares de anos. Nos trópicos da América do Sul, durante os eventos Heinrich, as mudanças de temperatura foram brandas. Em compensação, choveu muito mais. No caso do Brasil, o novo trabalho sugere que a distribuição geográfica dessas chuvas torrenciais sobre a área litorânea não foi uniforme. O grupo de Chiessi até propôs um novo mecanismo para explicar a profusão de chuvas acima do rio Doce e a escassez abaixo.

A hipótese dominante, com base na literatura científica, previa que os períodos de elevação exagerada de pluviosidade na Amazônia e no Nordeste estavam associados a uma cadeia de fenômenos climáticos fundamentalmente atrelados aos períodos de verão. Boa parte dessas tempestades, segundo ainda as teses mais aceitas, ganhava volume a partir da umidade proveniente da evaporação das águas da porção tropical do Atlântico Norte. “Mas nosso trabalho traz evidências de que o mecanismo responsável pelo aumento das chuvas nessas duas regiões do Brasil durante os eventos Heinrich é outro, que, até agora, não figurava na literatura científica”, diz Chiessi. Segundo ele, a evaporação do Atlântico Norte não tem relação com as tempestades da Era do Gelo na parte setentrional da costa brasileira.

As alterações drásticas do clima no passado, enquanto o homem moderno colonizava os continentes do planeta, teriam sido produzidas por diminuições, também abruptas, na intensidade da grande circulação das águas do Atlântico. A chamada Célula de Revolvimento Meridional é uma circulação oceânica de larga escala que carrega águas quentes, salinas e superficiais do Atlântico Sul até as altas latitudes do Atlântico Norte. As águas viajam na superfície do oceano de Salvador até Reykjavík, na Islândia, de onde se deslocam, dessa vez no sentido sul e em profundidade, até as proximidades da Antártida. A importância desses deslocamentos gigantescos de água é enorme para toda a engenharia do clima planetário. Estima-se que a quantidade de energia transportada por segundo pela grande circulação do Atlântico é quase 100 mil vezes maior do que a produzida pela usina hidrelétrica de Itaipu com todas as turbinas em operação.

Segundo o geólogo da USP, ao longo do trajeto rumo ao Norte, a intensa evaporação em baixas latitudes, mais perto do Equador, faria com que as águas oceânicas que estão sendo transportadas ficassem ainda mais salinas. Em seguida, seu resfriamento, nas altas latitudes, provocaria uma contração de volume. A maior salinidade e o menor volume deixariam as águas mais densas. Elas então submergiriam até quase 2 mil metros de profundidade e “viajariam” por milhares de quilômetros no fundo do oceano até a região antártica, onde voltariam a emergir. A diminuição dessa circulação oceânica teria sido responsável por bagunçar o regime de chuvas ao longo da região litorânea durante a última era glacial.

O grupo de Chiessi percebeu uma coincidência interessante entre o regime de chuvas do clima do passado glacial e a biodiversidade atual da Mata Atlântica. O rio Doce, que separava a zona que sofreu alterações drásticas ao norte daquela que teve clima menos variável ao sul, também é considerado uma espécie de linha divisória entre dois padrões de fauna e flora da Mata Atlântica. Muitas espécies de anfíbios e de répteis que ocorrem na porção norte desse bioma não são encontradas na sul. “É possível que o desenvolvimento das espécies de Mata Atlântica ao norte de 20 graus de latitude Sul tenha sido marcado, e até certo ponto controlado, pela ocorrência periódica de aumentos torrenciais de precipitação”, opina o geólogo. “Isso não deve ter ocorrido na parte sul desse bioma.”

A bióloga Cristina Miyaki, do Instituto de Biociências da USP, evita, no entanto, atribuir um papel exclusivo ao padrão não uniforme de chuvas torrenciais na costa brasileira durante a última glaciação como fator explicativo das diferenças encontradas ao longo da Mata Atlântica. Apesar de existirem vários trabalhos que mostram padrões distintos de diferenciação da fauna no norte e no sul do bioma, há também trabalhos feitos com grupos de aves, por exemplo, que não confirmam essa dicotomia. “Não me parece razoável supor que a evolução da biodiversidade dependeu somente de mudanças climáticas”, comenta Miyaki. “Por exemplo, alterações resultantes de atividades orogênicas [do processo de formação de montanhas] também podem ter sido importantes, assim como interações entre diferentes grupos de animais. Ou seja, a história dos organismos é bastante complexa e diferentes espécies responderam e respondem de modo diferente à mesma mudança.”

 

*Da Revista Fapesp