História oral privilegia o conhecimento por meio da escuta

Postado em 08 de setembro de 2020

Experiências e narrativas subjetivas de pessoas que se dispõem a contar uma história se tornam fonte de conhecimento e estudo para um grupo de pesquisa da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, em São Paulo. Os pesquisadores do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (Gephom) utilizam a história oral como metodologia para investigar migrações do Nordeste para o Sudeste, migrações internacionais, história de bairros, memórias de minorias e estudos de periferias.

Professora Valéria Magalhães, coordenadora do Gephom – Foto: Arquivo Pessoal

Ao longo da história da humanidade, o conhecimento foi transmitido de uma geração para a outra através da tradição oral. Mas a história oral que o Gephom trabalha é um método de pesquisa. “São métodos específicos para captar memória e representações do sujeito. Esse método é fundamentado nas entrevistas, que a gente chama em profundidade”, explica Valéria Barbosa de Magalhães, professora da EACH e coordenadora do grupo.

As entrevistas não são feitas a partir de perguntas prontas ou semiestruturadas. “No processo de história oral, em geral, o entrevistado tem mais liberdade para falar. Propomos temas ao invés de perguntas”, conta a professora.

Essa seria a história oral metodológica. Há uma outra vertente voltada para o registro de memórias de grupos, chamada de história oral pública. “Aqui estamos falando de registro e não de método. São exemplos os arquivos de história oral e memória do Museu do Imigrante no Brás. Outro exemplo é o Museu da Pessoa, uma iniciativa de história oral pública”, exemplifica Valéria.

A metodologia da história oral nos permite entender, por exemplo, como o preconceito influencia a percepção da identidade do migrante nordestino por pessoas de outros Estados.

Um projeto do Gephom, financiado pela Fapesp e coordenado por Valéria Magalhães, fez um levantamento de estudos brasileiros de história oral sobre o tema da imigração de nordestinos para o Sudeste. O preconceito vem de construções sociais que colocam o migrante nordestino como “seres inferiores”, com uso de expressões negativas como “cabeça chata”, designação para má aparência; “baiano” ou “paraíba”, indicativos de que alguém fez algo errado; e “mulher macho”, para mulheres paraibanas ou nordestinas, que seriam desprovidas de uma idealizada “feminilidade”.  A coordenadora do Gephom destaca que, na história oral, “a narrativa é uma construção, não o fato em si” e que o papel principal dessa metodologia é a escuta, ainda que exista uma análise do que é falado. “Nós interpretamos e a partir dessa interpretação trazemos explicações”, diz Valéria.

O estereótipo da mulher negra brasileira

A doutoranda Maria Carolina que está desenvolvendo sua pesquisa baseada na metodologia da história oral – Foto: Arquivo Pessoal

E a escuta que a doutoranda da USP Maria Carolina Casati Digiampietri, orientada por Valéria e pesquisadora do Gephom, está buscando em sua pesquisa são a de mulheres negras casadas com italianos. Ela quer entender como se dá essa relação a despeito do estereótipo da “mulata brasiliana” no imaginários de homens italianos, em que a imagem da mulher negra é hipersexualizada. A proposta do tema do estudo vem da sua experiência com a comunidade italiana. Maria Carolina trabalha em uma associação ítalo-brasileira e é filha de pai italiano e mãe brasileira. “O projeto surgiu de observações de estereótipos que me incomodavam”, afirma a pesquisadora. Devido à pandemia causada pela covid-19 e à restrição de viagens internacionais, a pesquisa teve que ser pausada. “As entrevistas serão com mulheres que moram na Itália, a conversa pessoalmente é fundamental em um trabalho de história oral. A escuta envolve observação de gestos, reação dos entrevistados”, explica Maria Carolina.

 

Por que banheiro público ainda é separado em homem e mulher?

O questionamento vem das considerações da pesquisa da ativista em direitos humanos Josefina Cicconetti, orientada por Valéria e pesquisadora do Gephom. Ela finalizou o seu mestrado na USP no ano passado e investigou as experiências de mulheres lésbicas nos banheiros públicos na cidade de São Paulo para identificar desigualdades em termos de gênero e sexualidade. “A pesquisa parte de uma experiência pessoal e foi levada à academia para problematizar a situação de outras mulheres que se autoidentificam como lésbicas e são barradas em banheiros públicos por não se adequarem ao padrão heteronormativo de mulher”, conta Josefina.

Imagem de Marcel Gnauk por Pixabay

A partir da entrevista com 10 mulheres lésbicas e suas experiências em banheiros públicos, a pesquisa demonstrou a necessidade de se quebrar barreiras simbólicas e culturais relacionadas à divisão estrutural do banheiro. “Há vários projetos de lei e leis em São Paulo para que esses espaços sejam segregados baseados em tabus, como a possibilidade de mulheres serem violentadas. Mas os números não indicam que as mulheres são violentadas em banheiros públicos”, contesta a ativista.

Para ela, a pesquisa mostra que a separação do banheiro em homens e mulheres mistura ideologia de gênero e violência contra mulher. “O banheiro público é o local por meio do qual, a diferença sexual vai se afirmar e sustentar, seja no sentido simbólico (os signos, figuras, representações do masculino e do feminino) ou literal (dispositivos de vigilância e controle que estão dispersos no meio social que instituem modelos de corpos-homem e corpos-mulher). Assim, o banheiro público representa, na sociedade paulista contemporânea, o último bastião do sistema heteronormativo e patriarcal.”

Uma pontuação que Josefina faz é em relação aos banheiros dos cadeirantes, onde geralmente não há separação física em homem e mulher. “Não há distinção, ninguém se importa que homens e mulheres usem o mesmo espaço.”

Josefina Cicconetti, mestra em Filosofia – Foto: Arquivo Pessoal

Ela explica que a preferência pela utilização da história oral na pesquisa ocorreu pelo entendimento de que, “como método de pesquisa, dá lugar, por um lado, às experiências e narrativas subjetivas dos diversos agentes que se dispõem a contar uma história e, por outro lado, por sua capacidade de diálogo e convergência com outras correntes de pensamento.”

Sobre o Gephom

O grupo de pesquisas foi fundado em em 2009 pela professora Valéria, da EACH/USP, e o professor Ricardo Santhiago, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para acompanhar as atividades do grupo, siga as redes sociais.

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*Do Jornal da USP