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Quebra da circulação do Atlântico aumentaria risco de colapso da Amazônia, alerta estudo
Postado em 01 de novembro de 2024
O possível colapso do sistema de correntes oceânicas do Atlântico é um dos tipping points (pontos de não retorno, em inglês) que mais ameaçam o equilíbrio climático da Terra, com consequências drásticas para o transporte de calor e a distribuição de chuvas em grande parte do planeta. Uma dessas consequências, segundo os cientistas, seria uma mudança nos padrões de precipitação da Amazônia, com redução de chuvas no norte e aumento de chuvas no sul do bioma. Mas qual seria o impacto disso sobre a cobertura vegetal da floresta?
Essa é a pergunta que um estudo liderado por cientistas da USP e publicado nesta sexta-feira (1º/11) na revista Nature Geoscience se propôs a investigar. A resposta, em resumo, é que as mudanças climáticas desencadeadas pelo enfraquecimento da Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico (mais conhecida como Amoc, na sigla em inglês), somadas às mudanças no uso do solo vinculadas ao desmatamento, podem provocar um colapso irreversível da cobertura florestal da Amazônia, segundo os autores.
Isso porque as áreas que seriam, teoricamente, beneficiadas por um aumento da precipitação são justamente aquelas onde a floresta já foi mais desmatada (no sul e leste do bioma), enquanto que as áreas atualmente preservadas no norte do bioma seriam fortemente impactadas pela redução das chuvas. “Os efeitos negativos de uma desaceleração da Amoc sobre a vulnerabilidade do norte da Amazônia, combinados com o estado atual de pressão antropogênica sobre os setores leste e sudeste da bacia, poderiam impactar o ecossistema amazônico de forma sistemática”, escrevem os pesquisadores.
“Pela primeira vez sabemos qual é a resposta da floresta a um enfraquecimento marcante da Amoc. Isso é muito importante”, diz o professor Cristiano Chiessi, especialista em Paleoclimatologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, que é um dos autores do trabalho. O estudo foi conduzido pelo geólogo Thomas Akabane, como parte da sua pesquisa de doutorado no Instituto de Geociências (IGc) da USP, sob orientação de Chiessi e do professor Paulo Eduardo de Oliveira, também do IGc.
As pistas sobre o que pode vir a acontecer na superfície da floresta, por incrível que pareça, vieram do fundo do mar. Os pesquisadores analisaram vestígios de pólen e microcarvão preservados em sedimentos marinhos que representam o que estava fluindo pela foz do Rio Amazonas milhares de anos atrás — incluindo um período em que a grande circulação do Atlântico foi temporariamente interrompida por processos climáticos e oceanográficos associados ao fim da era do gelo. Essa matéria orgânica, que fluía pelas artérias fluviais do bioma e acabava depositada no fundo do mar, serve como evidência do que estava acontecendo com a floresta no interior da Bacia Amazônica como um todo. É como se os cientistas estivessem analisando uma “amostra de sangue” da Amazônia do passado, preservada no fundo do oceano.
Neste caso, a bolsa de sangue é um um cilindro vertical de sedimentos compactados (que os cientistas chamam de testemunho) com mais de 7 metros de comprimento, extraído do leito marinho ao norte da Guiana Francesa — por onde passa a pluma de sedimentos da foz do Amazonas —, a mais de 2,5 mil metros de profundidade. A amostra foi coletada em 2012, durante uma expedição realizada com o navio de pesquisa alemão RV Maria S. Merian, que Chiessi liderou em parceria com colegas da Alemanha, que também assinam o estudo na Nature Geoscience. Praticamente todo o sedimento que recobre o leito marinho nessa região é de origem amazônica, segundo Chiessi, e há muitas “assinaturas” químicas e moleculares que os cientistas utilizam para comprovar a identidade e a idade desse material.
Os pesquisadores usaram esse registro histórico para entender o que aconteceu com a floresta amazônica em dois momentos fundamentais: o Último Máximo Glacial, entre 23 mil e 19 mil anos atrás (quando cerca de 8% da superfície do planeta chegou a ficar coberta de gelo), e um período de aquecimento que veio logo na sequência (entre 18 mil e 14.800 anos atrás), conhecido como Heinrich Stadial 1 (HS1), em que o derretimento das geleiras no Hemisfério Norte injetou uma quantidade imensa de água doce no Oceano Atlântico, causando um colapso temporário da Amoc.
As análises do material contido no testemunho indicam que a cobertura florestal da Amazônia passou por transformações importantes nesses dois períodos. No Último Máximo Glacial, segundo os pesquisadores, houve uma expansão de espécies de ecossistemas montanos (melhor adaptadas às baixas temperaturas do período) dos Andes e das Guianas para as terras baixas da Amazônia, onde antes predominavam espécie de clima quente e úmido. “Houve uma mudança bastante significativa na composição da floresta, mas ela nunca deixou de ser floresta”, destaca Akabane, em entrevista ao Jornal da USP.
Já no HS1 as coisas ficaram mais complicadas. Com o fim da era do gelo, a temperatura voltou a subir, empurrando a vegetação montana de volta para o topo das montanhas e abrindo espaço para a retomada das terras baixas da Amazônia por vegetação tropical. Ao mesmo tempo, porém, o colapso da Amoc causou um deslocamento do “cinturão tropical” de chuvas para o sul da Amazônia, deixando a porção norte do bioma desidratada. Além de florestas sempre verdes, a região foi ocupada por um mosaico de florestas sazonais e trechos de savanas. Não foi uma “savanização” completa, mas a floresta ficou muito mais seca. Foi só por volta de 14,8 mil anos atrás, no fim do HS1, que a cobertura florestal da Amazônia começou a assumir sua configuração atual.
Projeções Futuras
“Esse é o grande risco: a combinação de mudanças climáticas com mudanças de uso do solo”, sumariza Chiessi. Ele teme que o enfraquecimento da Amoc seja “a gota d’água” que faça o copo da sustentabilidade da Amazônia transbordar de vez. “Do que adianta a queda na precipitação no norte ser balanceada por um aumento no sul, se é nessa região que o desmatamento impera?”, questiona o professor. “Essa soma pode levar a floresta ao seu tipping point.”
Ninguém sabe dizer ao certo quando essa quebra da Amoc poderá ocorrer, mas estudos recentes indicam que o sistema já está perdendo força e que há um risco real de ele colapsar ainda neste século, em função do derretimento da capa de gelo da Groenlândia e de outros fatores associados ao aquecimento global. Isso significa que o transporte de massas de água entre o norte e o sul do Atlântico deixaria de acontecer, ou passaria a ocorrer de forma muito mais lenta do que ocorre hoje. Fazendo uma analogia, é como se você desligasse ou diminuísse a velocidade de um sistema de esteiras que transportam bagagens no aeroporto, por exemplo — sendo que, neste caso, as esteiras são correntes oceânicas e as malas são energia térmica (calor).
Segundo os pesquisadores, é imprescindível que estudos futuros sobre esse tema considerem os “impactos combinados de potenciais cenários futuros de enfraquecimento da Amoc sob condições reais de degradação florestal antropogênica e aquecimento global”.
Além do Brasil e da Alemanha, o estudo na Nature Geoscience é assinado por pesquisadores da Suíça, França, China, Holanda e Marrocos.
Mais informações com Thomas Akabane (thomask.akabane@gmail.com), Cristiano Chiessi (chiessi@usp.br) ou Paulo Eduardo de Oliveira (paulo.deoliveira@usp.br).