Estudo mostra que preconceito interfere na percepção sobre a identidade do migrante nordestino
Postado em 01 de junho de 2020
Pesquisa realizada pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP mostra que a palavra “nordestino” está impregnada de preconceito e de construções sociais que levam alguns brasileiros de outros Estados a enxergarem os migrantes do Nordeste como “seres inferiores” – crença totalmente infundada e que remete aos piores episódios de perseguição da história, tendo por base a ideologia eugenista de que supostamente a biologia poderia selecionar os “melhores” membros da raça humana.
Expressões como “cabeça chata”, designação para má aparência; “baiano” ou “paraíba”, indicativos de que alguém fez algo errado; e “mulher macho”, para mulheres paraibanas ou nordestinas, que seriam desprovidas de uma idealizada “feminilidade”, são algumas das condenáveis alcunhas que lhes atribuem valor negativo nas metrópoles do Sul e Sudeste. A pesquisa propõe uma reflexão sobre o assunto e a desconstrução dessa percepção generalista do migrante do Nordeste, fato que dificulta ainda mais a vida desse povo que muitas vezes deixou sua terra em busca de uma vida melhor.
Segundo a pesquisadora, visões generalistas colocam no mesmo grupo dos “aqueles nordestinos”, de maneira pejorativa, todos que vieram do Piauí, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia. Quando o fato é que “cada um desses povos traz consigo a história e a cultura peculiar de sua região”, diz.
Valéria afirma que o preconceito não acontece somente nas relações sociais do local de destino dos migrantes e dos encontros cotidianos privados, mas é reforçado por declarações ofensivas e xenofóbicas de alguns políticos que acabam por legitimar atitudes de preconceito. A pesquisadora lembra da visita que o presidente Jair Bolsonaro fez à Bahia, em 2019, para inauguração de uma usina em Sobradinho. Em vídeo gravado junto com um deputado o presidente justifica o aumento de sua frequência de suas viagens à Bahia: “Segunda vez que vem à Bahia, várias vezes já no Nordeste, cê tá virando um cabra da peste?”, pergunta o deputado no vídeo. “Só tá faltando crescer um pouquinho minha cabeça”, responde Bolsonaro, rindo. A frase se refere ao estereótipo de que o nordestino tem a “cabeça grande e chata”. Para a pesquisadora, o fato de as declarações virem do presidente só piora a situação porque ele acaba legitimando e estimulando comportamentos xenófobos da sociedade mais ampla.
Saindo da esfera pública para a privada, o estereótipo construído em torno do migrante dessas regiões brasileiras é o de um ser humano inferior, ignorante, feio e sem capacidade de exercer atividades laborais intelectualizadas. Nas grandes cidades, sobram para eles os trabalhos informais, os serviços domésticos, a fábrica e a construção civil. Segundo a pesquisadora, o preconceito pode ser percebido em todo lugar, mas foi nos bairros da Zona Leste paulistana que o estudo se debruçou e trouxe mais detalhes sobre o assunto.
Zona Leste de São Paulo
A partir dos anos 1960, a região acabou sendo destino de muitos dos que vinham do Nordeste em virtude da melhor oferta de infraestrutura de transporte coletivo (rede ferroviária), de moradia mais barata e da presença de algumas indústrias empregadoras. Os pontos de chegada eram a Hospedaria dos Imigrantes (hoje, Museu do Imigrante, R. Visconde de Parnaíba, 1.316 – Mooca) e a Estação do Brás. Alguns ficavam em pensões, em casa de amigos, de parentes e outros ficavam expostos aos atravessadores que, da própria Estação do Brás, os conduziam para subempregos e trabalhos braçais.
Entre a década de 1970 e 1990, a Praça Sílvio Romero, no Tatuapé, ficou conhecida como ponto de encontro dos nordestinos. O lugar era “uma extensa rede de comunicação entre o sertão baiano e a cidade de São Paulo” para troca de bens entre os que chegavam e os que iam para seus Estados de origem. Os que voltavam, levavam objetos que simbolizavam sucesso migratório (eletroeletrônicos, por exemplo) e os que vinham traziam produtos típicos de suas terras (doces, compotas, frutas e outros alimentos). Cartas chegavam e iam também com notícias de cada lugar.
A professora Valéria lembra ainda que o início das migrações do Nordeste para o Sudeste data do começo do século 20, sendo a década de 1930 o marco de sua intensificação. Esses movimentos perpassaram todo o século, chegando ao 21 com uma grande diversidade de fluxos migratórios e contextos diversificados que explicariam a heterogênea presença nordestina no Sudeste.
Mais informações: e-mail gephom@gmail.com com Valéria Barbosa de Magalhães.
*Do Jornal da USP