O consumo de carne de caça traz benefícios para a saúde de crianças ribeirinhas na Amazônia, diz pesquisa com participação da EACH

Postado em 11 de abril de 2022

Florestas provêm uma série de serviços ecossistêmicos para a sociedade global e para suas populações residentes. A floresta amazônica, em especial, destaca-se por seu papel na regulação do clima, armazenamento de carbono e regulação dos ciclos hidrológicos, serviços estes cujos benefícios ultrapassam seus limites geográficos.

A contribuição desses serviços para o mundo ou para outras regiões do Brasil, como o Cerrado e seu agronegócio, é frequentemente noticiada. Pouco se fala, contudo, sobre o papel crucial para as populações residentes na Amazônia. Nesse caso, os serviços são ainda mais cruciais, pois estão associados às necessidades básicas de alimentação e saúde de ao menos parte da população residente.

Uma possível explicação para o pouco destaque dado ao papel desses serviços na nutrição e saúde da população é que sua importância é tida como limitada às populações de menor renda e negligenciadas da região. Porém, a inversão em curso na direção da curva de redução na pobreza torna cada dia mais importante entender o papel dos serviços da natureza. Com o aumento da pobreza em andamento, espera-se que o número de pessoas que dependem deles deva aumentar substancialmente.

O provimento de carne de caça é um desses serviços essenciais para populações que habitam em regiões florestadas no mundo. Mesmo assim, pouco se sabe sobre os efeitos do consumo de carne de caça na saúde e nutrição das populações humanas que habitam em florestas como a amazônica. Um estudo publicado na última semana no periódico Scientific Reports, liderado pela pós-doutoranda Patricia Carignano Torres, do Programa de Pós-graduação em Modelagem de Sistemas Complexos da EACH/USP, traz luz para esta questão.

Os autores investigaram a relação entre o consumo de carne de caça e a prevalência de anemia em crianças de 6 meses a 5 anos de idade na Amazônia central brasileira. Para isso, utilizaram uma amostra com a maior abrangência geográfica e tamanho amostral para investigações do mesmo tipo. Os resultados da investigação mostraram que o consumo mais frequente de carne de caça de animais terrestres, como paca, anta, porcos-do-mato e aves, é associado a uma maior concentração de hemoglobina no sangue—um indicador de anemia—protegendo, assim, parcialmente as crianças de comunidades rurais ribeirinhas de sofrerem de anemia. Isso ocorre a despeito do acesso frequente dessas pessoas ao consumo de peixes.

Esse papel protetor parece ocorrer apenas em crianças de residências mais vulneráveis à pobreza, que são aqueles que comumente também possuem os piores indicadores de saúde. Ou seja, não foi observado o mesmo efeito para a concentração de hemoglobina em crianças de domicílios rurais menos vulneráveis à pobreza ou então em crianças que viviam nas cidades.

Os resultados desse estudo são importantes porque a carne de caça é uma importante fonte de ferro e a deficiência de ferro é, globalmente, a principal causa de anemia e de incapacidade em crianças menores de 5 anos. A anemia pode ocasionar menor desenvolvimento físico e mental, afetando a saúde e o bem-estar da infância até a vida adulta e podendo contribuir para perpetuar o ciclo de pobreza. De fato o estudo constatou que perto de dois terços das crianças amostradas em comunidades ribeirinhas eram anêmicas.

A carne de caça é, portanto, um benefício essencial para essas crianças e potencialmente insubstituível, mesmo em uma região com grande disponibilidade e consumo de peixes. A razão é que a falta de recursos monetários e questões logísticas, como a distância a centros urbanos e a falta de meios de transporte, impedem o acesso a outras fontes de proteína animal também ricas em ferro. Tentar substituir a carne de caça por aquela de gado seria uma solução ecologicamente desastrosa, pois o desmatamento associado à criação dos animais poderia destruir regiões ainda muito florestadas.

Uma melhor estratégia seria investir na promoção do manejo sustentável da fauna, realizado pelas próprias comunidades rurais ribeirinhas. O manejo correto poderia garantir a conservação das populações das espécies de animais caçados e, ao mesmo tempo, prover o acesso a fontes de proteína animal ricas em ferro para as populações vulneráveis à pobreza da região.

Apesar disso, o acesso à carne de caça não deve ser encarado como a solução única para eliminar a anemia nessas populações. Populações ribeirinhas na Amazônia sofrem de uma série de outras carências que interagem com este problema. Eliminar de fato a anemia e outras deficiências nutricionais obrigatoriamente requer ampliar os investimentos para melhorar o acesso a diversos serviços, como atendimento à saúde, saneamento e educação.

Os autores do artigo publicado são Patricia Carignano Torres e Carla Morsello do Programa de Modelagem em Sistemas Complexos da EACH/USP; Jesem Orellana da FIOCRUZ; Oriana Almeida, da Universidade Federal do Pará; os pesquisadores independentes André de Moraes, Moises Pinto, Maria Fink e Maira Freire; e por fim, Erik Chacon-Montalvan e Luke Parry da Lancaster University, este último o coordenador do projeto.

Mais informações, podem ser encontradas no artigo de acesso aberto “Wildmeat consumption and child health in Amazonia

Informações extras sobre o estudo

Foram amostradas no estudo 610 crianças de áreas urbanas e de 58 comunidades ribeirinhas de quatro municípios do estado do Amazonas sem acesso por estradas, incluindo municípios e comunidades remotas (até 250 km de distância do centro urbano mais próximo). Sorteamos 1.111 domicílios no total para fazerem parte da amostra e, naqueles domicílios em que havia crianças entre seis meses e cinco anos de idade, entrevistamos um dos pais ou cuidadores sobre a saúde e o consumo de carne de caça da criança. Além disso, fizemos um teste da concentração de hemoglobina no sangue da criança, um indicador de anemia.

Com esses resultados, os autores também estimaram o que ocorreria com a perda de acesso a esse recurso por maiores restrições legais ou pelo esgotamento da carne de caça. Se as crianças de domicílios rurais mais vulneráveis à pobreza perdessem o acesso à carne de caça, a prevalência de anemia poderia aumentar em seis pontos percentuais (ou 10%, em valores relativos), o que representa mais de três mil crianças apenas em municípios sem acesso por estradas no estado do Amazonas.

Foi constatado que quatro entre cinco crianças das comunidades ribeirinhas amostradas já consomem carne de caça (pelo menos eventualmente) entre um e dois anos de idade, enquanto na cidade menos de duas em cada cinco. Domicílios rurais consomem até quatro vezes mais carne de caça que os urbanos. Sendo assim, além do consumo maior, a prática de compartilhamento da carne de caça com crianças em idade de introdução da alimentação complementar pode estar relacionada ao efeito positivo do consumo de caça para a saúde das crianças em áreas rurais.

 

*Com informações de Patricia Torres, do Programa de Modelagem em Sistemas Complexos da EACH/USP