A criminalização do aborto no Brasil resulta em discriminação e violações do direito a um julgamento justo

Postado em 20 de julho de 2022

Um novo relatório do TrialWatch em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e o Human Rights Institute da Columbia Law School declara que as mulheres negras e pardas de comunidades de baixa renda, que são as pessoas com maior probabilidade de serem processadas por aborto no Brasil, enfrentam grandes desafios ao se defenderem nos tribunais. Durante os julgamentos, geralmente são negados a essas mulheres os seus direitos à privacidade, ao tratamento igualitário perante a Lei e à não discriminação baseada em gênero, raça e classe. Os resultados deste relatório são divulgados no momento em que os Estados Unidos sofrem um retrocesso em relação ao direto ao aborto para mulheres no país, com a possibilidade de que suas informações privadas venham a ser usadas como munição para processos criminais.

“Este relatório reforça as provas de outros estudos sobre como as mulheres, especialmente mulheres negras e de baixa renda, são processadas pelo crime de aborto com base em provas tênues”, explica a professora Fabiana Cristina Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.  “Essas mulheres estão expostas à violação sistemática de seus direitos reprodutivos. O processo no Brasil foi criado para expor e intimidar as mulheres, suas famílias e os profissionais de saúde que desejam tratá-las com dignidade,” acrescentou a professora Gislene Aparecida dos Santos, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.

Este relatório, parte de uma série do TrialWatch liderada pelo Human Rights Institute and Clinic da Columbia Law School sobre processos contra mulheres e meninas no mundo todo, se baseia na pesquisa conduzida por alunos e professores da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Apoio adicional de pesquisa e elaboração foi proporcionado por Sarah Mehta (diretora do projeto TrialWatch da Columbia Law School), Gabriel Teixeira Alves – LLM ’22, e Jessica Suruagy Amaral Borges – LLM ’22, para o projeto TrialWatch do Human Rights Institute da Columbia Law School.

Baseado na análise de 167 decisões judiciais de 12 tribunais brasileiros, o relatório constatou que as mulheres processadas geralmente eram denunciadas pelos próprios profissionais de saúde a quem recorriam para salvar suas próprias vidas. Além disso, esses profissionais frequentemente depunham contra as pacientes em juízo. Em muitos casos, a única prova contra as rés era apresentada por agentes de saúde, ou baseada em confissões obtidas sob circunstâncias potencialmente coercivas ou informações que constatavam que elas estiveram em uma clínica.

As mulheres também enfrentaram estigmas e preconceito por parte de juízes e promotores, que às vezes se referiam a elas como ‘frias’ ou sugeriam que elas demonstravam uma ‘insensibilidade notável’. Tais estereótipos que difamam as mulheres que fazem abortos, quando utilizados no tribunal, violam seus direitos à presunção de inocência e de serem julgadas por um tribunal imparcial.

“A criminalização do aborto—que já é em si uma violação dos direitos humanos—leva a outras violações, incluindo a discriminação racial e de gênero. Este estudo, um alerta oportuno a nós, dos EUA, mostra que esses não são danos especulativos,” acrescenta Sarah Mehta do Human Rights Institute da Columbia Law School.

Este relatório vai de encontro à enxurrada de esforços que visam restringir o direito ao aborto no Brasil, que já é tênue. O Brasil tem a mais alta frequência estimada de abortos no mundo, realizado por 44 a cada 1000 mulheres, mas em 2020, somente 42 hospitais no Brasil realizavam abortos legais. O aborto inseguro é uma das principais causas de mortes evitáveis no Brasil hoje. Ao mesmo tempo, um caso que confronta a constitucionalidade das restrições do aborto no Brasil está pendente em sua mais alta corte.

 

Histórico

No Brasil, o aborto é criminalizado na grande maioria das circunstâncias e só é legal sob condições restritas: em casos de estupro, para salvar a vida de uma mulher e em casos de anencefalia do feto (uma condição médica fatal na qual bebês nascem sem partes do cérebro ou do crânio). A criminalização do aborto não impede que mulheres realizem abortos, mas resulta na acusação e punição de mulheres negras e pardas de comunidades de baixa renda.

Dados analisados pela USP em parceria com o TrialWatch demonstraram que, nos últimos cinco anos, uma média de 400 novos casos por ano foram instaurados com acusações de autoaborto ou “consentimento para” aborto sob os Artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro. Os estados brasileiros com os maiores números de novos casos no período entre 2018 e 2022 incluem São Paulo (201), Minas Gerais (136), Rio de Janeiro (135), Bahia (79), Santa Catarina (77), Mato Grosso (71) e Pará (54).

A legislação internacional e as leis regionais emergentes de direitos humanos apoiam a descriminalização do aborto. Em novembro de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que El Salvador—onde o aborto é ilegal em todas as circunstâncias—havia violado os direitos de uma mulher que foi processada e condenada por homicídio por uma emergência obstétrica. Isso incluía seus direitos à privacidade, saúde, liberdade e não discriminação, assim como diversos direitos a um julgamento justo e o direito de não ser submetida a penas cruéis, desumanas ou degradantes. A Clooney Foundation for Justice e o Center for International Human Rights da Northwestern University Pritzker School of Law enviaram um amicus brief neste caso, explicando a discriminação e as violações de julgamento justo que tais processos em El Salvador muito frequentemente acarretam. De acordo com a decisão da Corte Interamericana, que se aplica ao Brasil e aos outros países sob jurisdição da Corte, profissionais de saúde não devem encaminhar mulheres que procuram abortos e outros tratamentos médicos às autoridades policiais.

 

*Da fundação “Clooney Foundation For Justice”